as semanas se sucedem mas não se parecem. não podemos nos acostumar com o bombardeio cotidiano de notícias falsas, provocações, ameaças e desmontes. a Casa do Povo é um centro cultural apartidário, mas não apolítico. foi erguida por uma frente antifascista da comunidade judaica nas ruínas da segunda guerra mundial. testemunhar, 74 anos depois da sua fundação, a proposta de enquadrar como terrorista uma simples hashtag #antifa (como se houvesse alguma organização central por trás), ora denuncia quem fez tal proposta como fascista, ora soa grotesco — talvez ambos.
nos últimos anos, a nossa atuação tem acontecido em uma esfera micropolítica. nas últimas semanas, porém, a macropolítica perfurou nossa epiderme.
é preciso dizer basta à apropriação de símbolos judaicos por representantes oficiais do país que, ao mesmo tempo em que usam e abusam destes, realizam saudações nazistas, plagiam discursos fascistas, homenageiam torturadores e questionam os direitos das minorias. esconder-se detrás de uma proposital ambiguidade e de parcerias escusas com Israel — um país, na verdade, tão diverso — não os torna amigos da comunidade judaica. a Casa do Povo, criada em memória aos seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas, manifestou sua indignação pela banalização e desvirtuamento deste martírio nas postagens recentes do Ministro da Educação, juntando-se à CONIB, ao American Jewish Committee, ao Cônsul Geral de Israel em São Paulo, ao Museu do Holocausto de Curitiba, à Associação Cultural Moshe Sharett, ao Instituto Brasil Israel, aos Judeus pela Democracia, ao Observatório Judaico pelo Direitos Humanos, à Resistência Democrática Judaica e a tantos outros movimentos.
a singularidade da história da Casa do Povo nunca foi uma barreira na sua solidariedade com lutas de outros povos. pelo contrário, assim como o genocídio perpetrado contra a comunidade judaica pelo governo alemão nos anos 30 e 40 foi uma crime contra a humanidade, os genocídios dos povos indígenas e da juventude negra e periférica no Brasil, e no mundo afora, dizem respeito a todos nós. como se não bastasse o massacre em curso há 500 anos, esses povos tiveram recentemente o reconhecimento constitucional das suas existências questionado assim como suas ancestralidades e símbolos máximos desrespeitados — como tem sido, por exemplo, a própria memória de Zumbi dos Palmares pelo presidente da Fundação… Palmares.
voltando a nossa epiderme perfurada e à micropolítica, a Casa do Povo gostaria, neste momento tão delicado, de reforçar a necessidade de tecer alianças transversais, de reconhecer os nossos devires plurais, de falar alto contra todo tipo de intolerância, discriminação e preconceito contra grupos minoritários, de cuidar das outras pessoas como se cuida de si, de defender a luta contra o fascismo e contra o racismo em nossos gestos cotidianos, de se levantar pelo povo preto, pelos povos indígenas e pelas comunidades LGBTQI+ contra as violências do estado. quando escutar falas preconceituosas, racistas ou homenagens a torturadores, é preciso reagir. caso contrário, tornamos essas falas passíveis de serem ouvidas e, portanto, de serem ditas. é preciso torná-las indizíveis. não podemos ser tíbios.
não foi só falta de ar que matou Pedro Henrique Gonzaga no ano passado, asfixiado pelo segurança de um supermercado. não foi só falta de ar que tirou a vida de George Floyd na semana passada, asfixiado por um policial. a falta de ar não é apenas pontual. além dos responsáveis individuais, existe uma responsabilidade coletiva inscrita no racismo estrutural que permeia a nossa subjetividade. por isso, ficar em silêncio é autorizar e ser cúmplice desses acontecimentos. por isso, uma instituição judaica, que se propõe a pensar o seu lugar de fala a partir de uma reflexão sobre a sua branquitude institucional, não vai deixar passar em “branco” o assassinato sistemático de pessoas negras. por isso, essa singela carta é uma contribuição nesse oceano de indiferença.
a morte de George Floyd por falta de ar surge em plena pandemia que mata, justamente, por falta de ar e, claro, pelo sucateamento da saúde pública. a nossa própria programação suspensa no ar, foi pensada como um respiro nesse momento tão delicado. mas essa programação só funciona quando em contato com todas as frentes de ação que realizamos off-line, no próprio bairro do Bom Retiro, atuando com milhares de pessoas. se ficamos sem ar como sociedade, é preciso agir como cidadãos. esse texto não se encerra aqui.